O desafio de cobrir COVID-19 não está apenas na complexidade intrínseca da pandemia e no fato de que a ciência em torno do vírus está em constante evolução. Também vem do esforço paralelo que os jornalistas têm que fazer para combater a desinformação generalizada. Mas, qual é a força por trás da onda de notícias falsas sobre COVID-19?
Essa foi uma das questões discutidas durante o painel “Desinformação e dados em evolução”, parte do webinar de 27 de janeiro Variantes, vacinas e medicamentos: o que os jornalistas precisam saber para melhorar a cobertura da COVID-19.
O evento foi organizado pelo Centro Knight para o Jornalismo nas Américas da Universidade do Texas, em parceria com a UNESCO, financiado pela Organização Mundial da Saúde e pelo Programa Multidoadores da UNESCO para Liberdade de Expressão e a Segurança de Jornalistas. O vídeo do webinar pode ser encontrado no YouTube em inglês, árabe, francês, português e espanhol.
A jornalista Davey Alba, uma das painelistas e repórter do New York Times especializada em desinformação online, disse que sua experiência na área a ensinou que a desinformação tende a seguir o ciclo de notícias, impactando qualquer que seja o assunto do dia.
“Com o COVID-19 sendo relevante para bilhões de pessoas em todo o mundo – é uma pandemia global – isso é algo em que os desinformadores se agarraram”, disse Alba, acrescentando que algumas pessoas viram a pandemia como uma oportunidade de fazerem fama ao espalhar informações incorretas.
Governo e redes sociais como fontes de desinformação
Em certos casos, as fontes da desinformação são justamente os que deveriam ser responsáveis por fornecer informações confiáveis ao público.
Jane Qiu, uma das painelistas e jornalista de ciência independente que cobre as origens do COVID-19, citou alguns casos em que os governos da China e dos Estados Unidos estiveram envolvidos em campanhas de desinformação.
“O Ministério das Relações Exteriores da China, por exemplo, insinuou que o vírus vazou de um laboratório militar perto de Maryland. E Tom Cotton, senador dos EUA, disse que o vírus foi projetado pelo laboratório de Wuhan e depois vazou”, disse Qiu. “É como assistir a duas crianças em uma briga de gritos, tentando competir com a outra para apresentar as alegações mais estapafúrdias.”
Esse tipo de falsidade com motivação política, observou Alba, tende a se espalhar para o público através das principais plataformas de mídia social, onde os algoritmos priorizam informações que chamam a atenção das pessoas e as mantêm seguindo o fio até chegarem a teorias da conspiração completas.
“O que vimos nos últimos dois anos, desde o início da pandemia, é que a internet é realmente um acelerador dessas falsidades”, disse Alba.
Uma das questões levantadas pela jornalista Deborah Blum, diretora do Programa Knight de Jornalismo Científico do MIT e moderadora do painel, foi se as principais empresas de mídia social deveriam desempenhar um papel maior no combate à desinformação.
“Um dos grandes problemas agora é que os jornalistas também contam com essas plataformas para divulgarem as notícias. Então, há algum tipo de tensão ética aí”, observou Blum.
Alba disse que as plataformas sabem que esse problema existe e estão cientes dos riscos.
“É difícil porque elas sempre falam sobre ter uma liberdade de expressão equilibrada e garantir que todos que querem dizer algo tenham a oportunidade de fazê-lo”, disse ela. “Ao mesmo tempo, acho que elas se mostraram bastante atrasadas. E não foram agressivas o suficiente em muitos casos.”
A jornalista Mandi Smallhorne, uma das painelistas e presidente da Associação Sul-Africana de Jornalistas Científicos e vice-presidente da Federação Mundial de Jornalistas Científicos (WFSJ), expressou preocupação com o fato de a publicação de notícias, tanto nas plataformas de mídia social quanto nos veículos de imprensa, é afetada por motivos de lucro atualmente.
“Não sei como fazer isso, mas acho que temos que ter algum mecanismo que combata isso porque a busca por cliques está afetando tudo no momento.”
Quem é vulnerável às notícias falsas?
É difícil estabelecer um arquétipo de uma pessoa particularmente vulnerável à desinformação, de acordo com Alba. Como essas teorias são tão difundidas na internet, elas provavelmente acabarão no feed das redes sociais de alguém que conhecemos.
“Acho que cabe a todos nós pensar nisso como um projeto comunitário para aumentar nossos níveis de alfabetização digital e garantir que todos com quem estamos em contato saibam como buscar boas fontes por si próprios”, ela disse.
Também é importante investigar por que algumas pessoas tendem a acreditar em notícias falsas. Segundo Smallhorne, no contexto de muitos países africanos, há um histórico justificável de desconfiança em relação à ciência ocidental. Populações africanas têm sido usadas para testes de drogas sem as salvaguardas necessárias.
“A lição que certamente aprendi como jornalista neste período não é olhar para essas pessoas e dizer: ‘vocês são um bando de idiotas porque acreditam nisso’, mas olhar para elas e dizer: ‘o que faz com que você acredite nisso?’”, disse Smallhorne.
Outras perguntas pertinentes a serem feitas, segundo ela, são: O que há no seu background que faz você se sentir menos confiante na ciência médica? Você tem medo de tirarem o seu poder? Por que você tem tanto medo de que o governo possa ter desempenhado um papel na criação disso?
“Com o COVID, ficou muito claro para mim que precisamos começar a pensar em diferentes formas de comunicação. Temos que começar a contar não apenas os fatos, mas também os sentimentos, as razões dos medos das pessoas”, disse Smallhorne.
Quando a mídia desinforma
A mídia tradicional também pode ser um vetor de desinformação sobre o COVID-19, conforme apontado pelo palestrante Federico Kukso, jornalista de ciência independente e membro do conselho do WFSJ. Na Argentina, por exemplo, houve uma grande campanha contra os confinamentos no início da pandemia, liderada principalmente pelos maiores jornais do país, cuja agenda colidia com o governo, disse ele.
“Para mim, é importante que as organizações de notícias contratem jornalistas especializados, que tenham experiência suficiente para lidar com a pandemia. As palavras que usamos são importantes”, disse Kukso.
Um dos problemas que surge da ausência de jornalistas de ciência em muitas redações é que, às vezes, um jornalista político, por exemplo, entrevista um cientista com expertise em uma área para comentar sobre um assunto fora daquela área específica, fenômeno conhecido como invasão epistêmica. Houve casos em que pesquisadores usaram sua autoridade como cientistas para promover teorias questionáveis.
“Na verdade, tento ser mais cético em relação aos cientistas que querem estar na mídia e têm essas grandes declarações. Mesmo que sejam ganhadores do Nobel, não temos que confiar nisso. Temos que confiar nas evidências, não na voz dos cientistas”, observou Kukso.
Jornalistas bem-intencionados, mas despreparados, também podem ser vítimas do hype de possíveis tratamentos ou mesmo da vacina. Kukso mencionou que, na América Latina, quando o número de novas infecções aumentou recentemente, as pessoas começaram a dizer que as vacinas não funcionavam porque a mídia estava descrevendo a vacina como um escudo infalível que protege as pessoas do vírus.
“Minha recomendação para os jornalistas é que tentem ser mais moderados, especialmente levando em conta que por trás dos press releases estão as grandes empresas”, disse Kukso. “Todos nós queremos ouvir ou ler notícias que digam que alguma droga vai acabar com essa pandemia para sempre. Mas acho que isso acaba minando a confiança das pessoas na ciência.”
O excesso de otimismo e a falta de uma interpretação rigorosa dos dados também afetaram a cobertura da variante Omicron. Smallhorne mencionou que a Omicron atingiu a África do Sul depois que a onda da variante Delta expôs uma grande parte da população ao COVID-19. Por isso, quando a Omicron apareceu no país, o impacto não foi tão forte quanto em outros locais.
“Então, havia essa história, essa narrativa de que Omicron era leve”, disse ela. “E, infelizmente, isso se espalhou por toda parte e contribuiu para uma resposta ruim, acho que até uma política ruim, em torno do combate à Omicron.”
Existem medidas que os jornalistas podem tomar para evitar a disseminação de desinformação. Talvez a primeira seja identificar possíveis vieses nas fontes, especialmente ao relatar tópicos intensamente políticos como o COVID-19.
“Todos nós temos nossos próprios vieses também. Somos todos humanos e temos opiniões. Acho que a primeira coisa é realmente reconhecer e ser honesto sobre nosso próprio potencial viés”, disse Qiu.
Os jornalistas também devem tomar cuidado com o problema do falso equilíbrio – quando os repórteres apresentam dois pontos de vista opostos como se fossem igualmente válidos, quando na verdade as evidências apoiam apenas um desses lados.
“O importante para evitar o falso equilíbrio é que temos que comunicar muito claramente onde está o consenso científico e qual é o peso das diferentes linhas de evidência”, disse Qiu. “E isso tem que ser apresentado de uma maneira que [mostre] que é um processo contínuo. Não são conclusões fixas, porque o consenso pode estar errado e as coisas podem mudar com novas evidências.”
Um dos principais objetivos dos jornalistas que cobrem ciência e a pandemia, segundo os palestrantes, é transmitir adequadamente as incertezas da ciência.
“Uma das coisas problemáticas que vi durante esse período, é que frequentemente víamos reportagens que diziam – é isso que está acontecendo – em vez de transmitir cuidadosamente que a ciência é um processo evolutivo, especialmente em algo como uma pandemia”, – disse Smallhorne.