Dois anos após o início da pandemia, há muito que a ciência sabe sobre a COVID-19, mas também ainda há muito que não se sabe. Um dos aspectos que pesquisadores ainda estão às voltas tem a ver com a evolução do vírus SARS-CoV-2. Qual a probabilidade de diferentes variantes se fundirem em uma nova? O que essa fusão significaria para o curso da pandemia e para as vacinas que temos agora?
Essas e outras questões estiveram no centro de um painel sobre mutações e variantes durante um webinar para jornalistas que cobrem a pandemia, ocorrido em 27 de janeiro.
“Variants, Vaccines and Medications: What Journalists Need to Know to Improve COVID-19 Coverage” (“Variantes, vacinas e medicações: o que jornalistas precisam saber para melhorar a cobertura de COVID-19”) foi organizado pelo Centro Knight para o Jornalismo nas Américas da Universidade do Texas, em parceria com a UNESCO, financiado pela Organização Mundial da Saúde e pelo Programa de Multi-Doadores sobre Liberdade de Expressão e Segurança de Jornalistas. As gravações do webinar estão no YouTube em inglês, árabe, francês, português e espanhol.
Angela Rasmussen, virologista da Organização de Vacinas e Doenças Infecciosas da Universidade de Saskatchewan, Canadá, disse que um aspecto interessante que ela notou sobre a cobertura jornalística da pandemia é que toda vez que cientistas identificam uma variante de preocupação, ela é tratada quase como uma “surpresa” – o que não deveria ser, pois vírus evoluem e as variantes são um sinal natural disso.
“Para mim, não é surpreendente que, se você pegar um vírus de RNA como o SARS-CoV-2 – ou qualquer outro vírus de RNA – e deixá-lo circular livremente na população, você terá novas variantes evoluindo, mas a maneira como isso é coberto é muitas vezes ingênua”, quase como repórteres sempre tivessem uma reação de, “’Ai, meu Deus, não acredito que temos uma nova variante!’”, disse ela.
Rasmussen disse que pesquisadores e epidemiologistas ainda não sabem a origem exata da variante Omicron – mas suspeitam que ela não evoluiu como as anteriores. Algo que não surpreende quando se sabe como funcionam os vírus de RNA.
“Esse vírus em especial é um generalista, pode infectar várias espécies diferentes, e esperamos vê-lo continuar a se adaptar e evoluir para qualquer hospedeiro em que esteja – mas essa [variante] surgiu de uma maneira diferente das variantes anteriores”, disse.
O que cientistas sabiam no início da pandemia, no entanto, é que o SARS-CoV-2 teria uma taxa de mutação semelhante a outros coronavírus. Ao contrário da gripe, que é composta de oito peças genômicas separadas – e por isso pode se misturar com bastante facilidade entre seus vários tipos – os coronavírus são feitos de apenas uma peça genômica, o que os faz “misturar” em taxas mais lentas em comparação com a gripe. No entanto, os coronavírus ainda têm uma alta taxa de mutação – e no caso da COVID-19, foi especialmente ajudado por medidas de contenção fracassadas em várias partes do mundo.
Para Rasmussen, a mídia não deve focar nas variantes como um elemento surpresa, mas sim enfatizar como o comportamento social está contribuindo diretamente para o surgimento dessas variantes. A falta de cuidados adequados para reduzir a transmissão e o acesso global às vacinas devem ser o verdadeiro foco, pois essas medidas podem reduzir o surgimento de novas variantes.
Achamos que a Omicron é uma variante “mais leve” – os jornalistas são os culpados?
Kai Kupferschmidt, repórter da revista Science na Alemanha, disse que a narrativa da ‘Omicron leve’ começou quando a variante foi detectada na África do Sul, onde cerca de 70% das pessoas tinham anticorpos contra ela, mesmo que a cobertura vacinal fosse baixa. Ele alertou, no entanto, que repórteres não devem presumir que o mesmo cenário se aplicaria a outras regiões do mundo. O aumento das taxas de mortalidade em países como os Estados Unidos, por exemplo, contradiz a ideia de que a Omicron é de fato uma versão mais branda do SARS-CoV-2.
Purvi Parikh, alergista e imunologista da Associados de Murray para Alergia e Asma, disse que o termo ‘leve’ lhe dá calafrios – “transmite a mensagem errada ao público em geral, como se [Omicron] fosse algo que não deve ser levado tão a sério – e isso está contribuindo para o comportamento humano de não tomar precauções, em combinação com o cansaço da pandemia”, disse ela.
Em sua pesquisa e prática como imunologista clínica, Parikh viu formas “mais leves” do vírus em pacientes vacinados e reforçados que não precisaram de hospitalização ou internações na UTI após serem infectados.
“Mas isso não é absoluto. Todos os dias vemos pessoas internadas que foram vacinadas e tomaram a dose de reforço – e até aquelas pessoas com sintomas ‘leves’ se recuperando em casa (…) ficam mal com o vírus, não apenas enquanto estão transmitindo a infecção, mas mesmo semanas depois”, disse ela.
Além disso, é bom lembrar que mesmo as formas “mais leves” de infecção podem levar à COVID longa, com sequelas debilitantes. Além disso, a infecção por COVID-19 causada pela Omicron não é leve para pessoas não vacinadas.
“Ainda estamos vendo essas pessoas serem intubadas e falecerem, mesmo com a variante Omicron, e também têm muitos efeitos de longa duração. De fato, a primeira morte [relacionada à Omicron] nos EUA foi alguém que não foi vacinado, mas teve exposição anterior à COVID-19”, disse Parikh.
Com a Omicron, a situação é diferente do que era com as variantes Delta ou Gama. Para Kupferschmidt, os jornalistas podem estar conferindo agência demais às variantes: é crucial entendê-las e explicar o que significam, “mas o mais importante no momento é saber qual é a imunidade da população entre a qual a Omicron está se espalhando”, disse ele.
Podemos prever novas variantes, e vacinas podem vencê-las?
Em um mundo onde três bilhões de pessoas ainda não receberam suas doses de vacina, é quase certo que mais variantes vão surgir, disse Rasmussen. Se essas variantes terão propriedades semelhantes às da Omicron ou se serão mais transmissíveis – ou potencialmente mais infecciosas – é difícil dizer. Na Dinamarca, existem algumas sub-linhagens da Omicron “competindo com a receita original da variante” e isso é algo que acontecerá com mais frequência. Levando em conta o atual estado global de vacinação, disse Rasmussen, seria surpreendente não ver outras variantes surgirem.
Parikh concordou e disse que “seria tolice de nossa parte tentar fazer qualquer previsão, porque, nesta pandemia, a única constante é a mudança e a imprevisibilidade. Há tantos fatores que entram no cenário: comportamento humano, atraso na vacinação… então é apenas uma questão de tempo [até que surjam novas variantes].” A principal preocupação, ela acrescentou, deve ser as vacinas em si e se elas resistirão a futuras variantes ou não.
Para Kupferschmidt, esta é uma questão complicada para os jornalistas, especialmente quando se usa a nomenclatura da Organização Mundial da Saúde (OMS). Dependendo do cenário de contágio e de outros aspectos específicos do vírus SARS-CoV-2, o que é uma sub-linhagem hoje pode se tornar uma variante amanhã. Jornalistas devem se aprofundar ao cobrir isso, prestando atenção ao que diferencia uma nova variante de uma sub-linhagem – e ao que isso significa para a saúde coletiva.
O jornalista tocou em uma questão espinhosa. As vacinas diminuem o peso da doença e podem evitar mortes, mas a vacinação por si só não impedirá o surgimento de variantes. As vacinas contra COVID devem estar alinhadas a medidas de contenção eficientes para desacelerar a pandemia.
“Olhando para o mundo agora, são os países com as maiores taxas de vacinação que estão permitindo que o vírus se espalhe sem controle – a Dinamarca é um lugar onde você esperaria ver uma variante evoluir”, disse Kupferschmidt. Defender uma distribuição equitativa de vacinas faz sentido como uma ação ética – e a pandemia deve ser, disse ele, a oportunidade de falar sobre comportamento ético “pelas razões certas, que nem sempre são o interesse próprio”.
Rasmussen disse que não veremos a COVID-19 desaparecer tão cedo, pois o vírus não é um problema apenas para os humanos. “Não conseguiremos eliminar esse vírus. Existem tantas espécies que não seremos capazes de vacinar que podem ser infectadas… então variantes continuarão a surgir. A questão é o quanto isso importa para nós – e é aí que entra o argumento da equidade na distribuição da vacina”, disse ela.
“As variantes estão aqui para ficar – mas a questão para as perspectivas de longo prazo para nós é por quanto tempo elas continuarão sendo um problema sério de saúde pública para nós”, concluiu Rasmussen.
Parikh foi além.
“As vacinas não garantem zero variantes. Eles deveriam apenas nos preparar para o sucesso [no combate ao vírus]. Eles não são garantia de zero infecções, como vemos com pneumonia ou gripe. O ponto é que queremos reduzir mortes e hospitalizações – e esperamos reduzir a transmissibilidade também. Se houver menos vírus se replicando em você, teoricamente é menos provável que você o transmita.”
Ainda assim, a equidade na distribuição da vacina é importante, disse ela, “porque todos merecem ter essa proteção contra uma doença grave, e contra a morte”.
Precisamos saber mais
Algumas perguntas ainda não foram respondidas e especialistas estão procurando soluções. Por exemplo, se uma infecção com Omicron protege contra outras variantes do SARS-CoV-2, como o Delta, ainda é uma questão em aberto.
Para Parikh, não há garantia de que uma infecção por Omicron proteja contra outras variantes. Dados da África do Sul sugerem, no entanto, que pessoas infectadas com a Omicron poderiam lidar melhor com a variante Delta.
“Mas, por outro lado, temos visto reinfecções de Omicron mesmo dentro de seis semanas após a infecção – ou pessoas que tiveram Alfa ou Delta se infectando com a Omicron. Não há garantia [de proteção]”.
As células T, ela enfatizou, têm sido as partes mais resistentes do sistema imunológico contra variantes até agora – e Parikh acredita que continuarão sendo assim. Entender como as células T funcionam poderia até ajudar a compreender por que alguns indivíduos chegam a quadros graves com a COVID-19, enquanto outros não.
Outra questão que cientistas estão analisando diz respeito aos reservatórios animais que permitem o surgimento de novas variantes do vírus SARS-CoV-2. O laboratório de Rasmussen está investigando isso no momento. Há relatos de infecções em veados-da-virgínia e outros animais.
“Existem várias espécies candidatas, mas honestamente, ainda não começamos nem a arranhar a superfície de quantos animais podem realmente estar infectados e que têm variantes do SARS-CoV-2 potencialmente específicas de animais circulando nessas populações,” disse Parikh.
Especialistas ainda precisam descobrir o que a circulação viral entre animais e humanos pode significar para a evolução do vírus – e como isso pode afetar a saúde pública humana ou a saúde animal.